Thursday, September 23, 2004

13. Textos d'ontem - "Missão de cronista"

Crónica de rádio – 28 Jan 1986

MISSÃO DE CRONISTA
Olá, bom dia!

Chegaram-me ecos de que a crónica da semana passada teria sido mal recebida por alguns membros da classe docente.

É evidente que, ao aceitar subscrever crónica semanal, pautando-me exclusivamente por critérios pessoais (como, aliás, com toda a simpatia foi frisado pelos responsáveis pelo programa em que se insere a rubrica), critérios esses apenas balizados pelo decoro e cuidados indispensáveis a quem fala pela rádio, e orientado pelo que me pareça ser de interesse público, aceitei implicitamente o risco de, em algumas oportunidades, agradar a uns e desagradar a outros e de, em outras, acontecer precisamente o inverso. E claro que descontei o de vir a acontecer que desagrade a todos. Mas isso já é outra história.

Trata-se de risco calculado, perfeitamente assumido, mesmo porque entendo correrem riscos todos quantos metem mãos a qualquer empreendimento. Quem não está disposto a corrê-los fica em casa que é mais seguro, mais cómodo até. E, daí…

Quer-me parecer, no entanto que o desagrado em que terei caído perante algumas pessoas resulta de uma menor atenção ao real conteúdo da crónica.

Os membros da classe que presumivelmente se terão sentido desconfortavelmente atingidos pelo que disse, certamente que deduziram – e, permitam, que o diga, apressadamente deduziram – que do que se tratava era de um ataque à classe. Ora, nada mais desconforme com a realidade. Jamais tal intenção orientou os meus comentários. Aquele e todos os restantes.

Desde logo, porque tenho a maior consideração pelos professores, enquanto classe profissional, como pessoas individuais. Mas também porque, conhecendo uns quantos, sei das dificuldades com que quantas vezes se debatem para exercerem plenamente a sua missão. Em outras ocasiões e em outros “fora” tive já oportunidade de os defender. E fá-lo-ei sempre que em consciência o entenda necessário e justo.

Daí, porém, a pretender-se que os professores constituam uma classe com a qual não se pode bulir, peço desculpa, mas entendo que vai um passo muito largo. Que eu não dou.

E, já agora, por que motivo terá causado engulhos uma crónica que se limitou a transcrever notícia e, relativamente a um caso muito concreto e que me pareceu caricato, a comentá-la um tanto ácida quanto jocosamente – concedo – e a dela retirar uma ilação mais do que óbvia?

Francamente, fico perplexo! E mais ainda porque entendo que os mais interessados numa crónica daquele tipo serão os próprios professores que, não afinando pelo diapasão daquele conselho directivo, entendiam ainda que a sua atitude se mostrava claramente desfavorecedora da imagem da classe. Será que este raciocínio era – é – incorrecto? Nem posso admitir tal hipótese, por absurda.

No exercício da minha profissão, considero-me pessoa honesta e cumpridora dos deveres que lhe estão cometidos. Terei, contudo, colegas que o não serão. Ora, se um dia destes verificar que é publicitada acção – ou omissão – de um ou vários colegas que, não cumprindo aquilo a que estão obrigados, chegam ao ponto de sacudir culpas próprias para costas alheias, não só não me sentirei pessoalmente atingido, nem creio que a classe deva julgar-se desconsiderada, como aplaudirei essa divulgação, precisamente porque entendo que é urgente que em Portugal as coisas se clarifiquem de vez, separando-se o trigo do joio. A igualitarização pela negativa não é aceitável.

Tudo o que vai além disto não tem importância, é especulativo, sem valor.

Estou firmemente crente de que a esmagadora maioria da classe docente me compreendeu e comigo está de acordo. Quem não deve, não teme!

Bom dia!

Ruben Valle Santos

Wednesday, September 22, 2004

12. Efeméride – "O começo do Outono"


Tem hoje início o Outono, estação do ano que precede o Inverno.

Segundo os etimologistas, em sentido figurado, significa igualmente "decadência".

Discordo. Não da etimologia, mas da prática de vida. Frontal e energicamente, muito embora eu próprio tenha transposto já o umbral da entrada que, tão convencionalmente como sem qualquer indispensável
aggiornamento, nos leva ao ghetto dos já não capazes, sem préstimo, inúteis.

Trata-se de um tremendo engano – quantas vezes autêntico embuste, despudorada injustiça – esse de se incutir a ideia de que o Outono, meteorológico, como o da vida de um ser humano, constituir uma estação de antecâmara do fim. Apenas os ignaros, sem experiência de vida, mas convictos das suas ridículas, por inexperientes, verdades únicas, podem cair no logro de tal lugar comum que, como a generalidade dos lugares comuns, não passa de balela sem consistência. Frase feita, cliché sem fundamento inteligente.

Fiquem sabendo, quantos por aí dessa forma abstrusa e orfã de senso pensam, que o Outono – do ano ou da vida – constitui uma das mais belas, activas e produtivas fases por que passam os seres humanos.

É no Outono do ano que a vida activa – realmente activa – em cada ano e sempre recomeça. É o retorno ao trabalho, aos estudos, à preparação para os rigores invernais, a época das grandes novidades artísticas e de empreendimentos vários, o despertar da letargia do Verão, da improdutividade estival, o retomar de projectos parados, antes prostrados pela canícula.

É no Outono da vida que, em certo sentido, também há um novo alento. É a oportunidade para, liberto de preocupações mais imediatas e pressionantes, o Homem se dedicar, enfim, à sua verdadeira dimensão, a de criador – como dizia Agostinho da Silva, o Homem não nasceu para trabalhar, antes para criar –, sua missão primeira nesta passagem terrena.

E se o Outono anual é, em simultâneo, a estação produtiva por excelência e a singularmente mais calma e retemperadora, o da vida, sendo-o igualmente, tem ainda, sobre as restantes, a vantagem de poder recuar na memória e avançar na antecipação do futuro. A primeira oferece-lhe a experiência que o previne contra escolhos que antes não previra; a segunda dá-lhe a certeza de que, havendo muito caminho ainda a percorrer, há igualmente fortes possibilidades de esse percurso revestir formas e andamentos nunca antes possíveis na procura e obtenção de realização pessoal.

É isso, os outonos – do ano e da vida – são as melhores fases da vivência humana.

A menos que, inopinada e absurdamente, numa qualquer TV, feita de imediatismos incongruentes, um qualquer imberbe, convicto de que tudo sabe e nada mais precisa de aprender, resolva, de forma canhestra e sem vestígios de mínima preocupação social, propale aos ventos hertzianos, como se notícia de relevante interesse público constituísse:

- Esta tarde, na Avenida da República, em Lisboa, um idoso de 62 anos, foi atropelado por
uma viatura, tendo dado entrada na urgência de S. José.

Sabe que mais? Idoso de 62 anos era a avó torta dele. E será ele também, quando lá chegar. E daí... Idoso já ele é. Apenas lhe faltam os anos. E a consequente sabedoria de vida.

Ruvasa

11.Textos d’ontem - "O país das maravilhas"

Crónica de rádio – 21 Jan 1986

O PAÍS DAS MARAVILHAS

Olá, bom dia, amigo ouvinte!

Portugal é, sem dúvida, o “País das maravilhas”, como muito bem referia Vasco Pulido Valente numa secção que, sob aquele título, assinava no semanário “Expresso”, aqui há uns anos atrás.

Não acredita? Então, preste atenção a uns extractos de uma notícia publicada no Correio da Manhã, de 19 do corrente, anteontem, portanto. Passo a citar:

“O pai de um aluno da Escola Secundária Gil Vicente, em Lisboa, pôs à disposição do Ministério da Educação a verba necessária para custear as despesas com o pessoal menor. Isto porque, e segundo o Conselho Directivo, é devido à falta deste pessoal que a escola, que devia ter aberto no dia 6 de Janeiro, ainda se encontra encerrada.
O Conselho Directivo daquela escola explicou (…) que não foram iniciadas as aulas no segundo período, em virtude de quatro funcionários do serviço de apoio terem sido colocados, por concurso, no Ministério das Finanças, sendo agora insuficiente o número de elementos disponíveis para manutenção do funcionamento dos referidos Serviços.
Actualmente – referiu o Conselho Directivo – existem 46 funcionários na escola”
(fim de citação).

Como diria alguém: Palavras para quê? Trata-se de conselho directivo português, em escola portuguesa, para alunos portugueses.

Pois bem. Sem dúvida que o Ministério da Educação não responde como seria lícito esperar-se. Mas – pergunta que parece pertinente –, será que as culpas são apenas do Ministério? Trata-se de uma brincadeira, não? De mau gosto, é certo, mas brincadeira! Querem fazer-nos acreditar que, num quadro de pessoal menor de 50 unidades, a falta de 4 (quatro!) é motivo suficiente para impedir por completo o funcionamento da escola?

Pergunto novamente: - Trata-se de brincadeira, não? E deixe-me que responda: - Não! Claro que não se trata de brincadeira. É, muito pelo contrário, caso muito sério e que obedece a estratégia bem definida e cumprida à risca, como muitos outros casos similares que se verificam diariamente por esse País fora. É boicote! Boicote puro e simples! Com uma única finalidade: desestabilizar, deitar abaixo! Quanto pior, melhor, é a divisa. Alguém tem dúvidas?

Então, o que se faz a um conselho directivo destes? É que, das duas, uma: ou é totalmente incompetente ou sabota conscientemente. Em qualquer dos casos só há um caminho a seguir, que é o de o substituir por outro mais consciente do interesse público e das próprias responsabilidades na satisfação desse interesse.

Não tenha dúvidas, caro ouvinte. Sempre que até si cheguem notícias sobre o funcionamento deficiente ou mesmo o não funcionamento de qualquer escola, fique de pé atrás e, se quiser saber quais as verdadeiras razões, busque por si próprio a maior informação possível.

Isto, para que não fique com a sensação de que está a ser manipulado. O que é desagradável, não concorda?

Bom dia.

Ruben Valle Santos

Tuesday, September 21, 2004

10. Textos d’ontem - "A segurança nas escolas"

Crónica de rádio – 14 Jan 1986

A SEGURANÇA NAS ESCOLAS

Olá, bom dia!

A segurança dos cidadãos deve constituir questão prioritária de quem governa, a nível local como nacional.

Isto porque, sem ela, as pessoas vivem atemorizadas, receando o pior e até os níveis de produção de uma sociedade insegura se ressentem notoriamente.

Não, não falo aqui daquele tipo de segurança que tantas vezes é invocado, para mais facilmente se coarctarem as liberdades individuais. Aí, a história é outra e é bem certo que os inconvenientes funcionam em ambas as direcções, ou seja, coarctam-se as liberdades em nome do que eufemisticamente se apelida de segurança dos cidadãos e cria-se um clima de maior insegurança porque nada é mais atentatório da quietude das gentes quanto a sufocação da ânsia de liberdade dos povos.

De qualquer modo, convém não esquecer que a liberdade de cada um jamais estará autorizada a meter em crise a segurança da comunidade. Mas esses são outros contos e não é deles que trato neste momento.

O que me preocupa agora – e estou certo de que é causa de ansiedade sua também – é a segurança dos cidadãos na verdadeira acepção da palavra. Aquela segurança que, até mais do que um facto, digamos, real, palpável, é uma sensação. Que permite que os cidadãos não passem o tempo com o credo na boca, temendo pela integridade física e moral próprias, mas, principalmente, daqueles que mais chegados lhe são.

Setúbal é, na verdade e infelizmente, uma cidade extremamente insegura. A criminalidade aumenta exponencialmente e não se vê, de há anos para cá, que qualquer medida concreta tenha sido tomada em defesa do cidadão comum, para além dos aspectos que se referem à intervenção das autoridades policiais, o que, convenhamos, é manifestamente insuficiente, tendo, por isso, que ser complementada por outras medidas de prevenção primária.

Um dos motivos que tornam a cidade insegura reside na falta de iluminação. Na verdade, a nossa terra está às escuras. Quase literalmente. E a escuridão, como se sabe, é a aliada preferencial da delinquência, da criminalidade.

É confrangedor, por exemplo, o que se verifica junto das escolas, tanto primárias, como preparatórias e secundárias.

Se o ouvinte tem filhos em idade escolar, frequentando aulas na parte da tarde, ou se, mesmo não os tendo, assistiu já ao final do dia escolar, entre as 18 e as 18,30, certamente que concorda com o que lhe digo. A escuridão que as rodeia é total. De tal modo que, no meio da multidão constituída pelos alunos, familiares que, assustados, ali acorrem em socorro dos seus meninos, e sabe-se lá quem mais, ninguém consegue reconhecer ninguém a pouco mais de três metros. O caos generaliza-se.

Quase se é tentado a ir para lá, como Diógenes, de lanterna em punho. Mas o que em Diógenes era perceptível e aceitável, em nós resultaria caricato.

Será assim tão difícil providenciar por que, ao menos nas imediações das escolas, haja iluminação minimamente decente? Não parece que seja. E as nossas crianças e os nossos jovens bem o merecem.

Bom dia, caro ouvinte!

Ruben Valle Santos

Monday, September 20, 2004

9. A "hora negra" e a memória deficitária...


No blog “República Digital”, do sistema de blogs da Assembleia da República, publicou, hoje, o deputado socialista José Magalhães, um post, que intitulou “O populismo antiparlamentar ao ataque”.

Faz, assim, coro com Vital Moreira que, no blog “Causa-Nossa”, sob o título “
O caso da semana: a desconsideração da oposição”, se insurge contra a circunstância de o actual primeiro-ministro não ter comparecido à interpelação parlamentar promovida pelo Bloco de Esquerda.

Entende JM que "a resistência institucional ao populismo antiparlamentar vive uma hora negra". Caso de extrema gravidade porque “como afirma VM”, “um dos requisitos essenciais de uma democracia parlamentar é a presença do governo no Parlamento para prestar contas dos seus actos (…)”.

Claro que, com estes alarme e alarido, em que, aliás, é especialista de créditos firmados, José Magalhães conseguiu chamar em seu “socorro” três ou quatro leitores que, aproveitando o ensejo que o “guru” lhes facultou, não estiveram com meias medidas e vá de zurzir Santana Lopes e mais uns quantos com invectivas várias e piropos de elegância duvidosa, chegando ao ponto de atribuir intenções ditatoriais à maioria actualmente no governo. Ridiculous!

Não fora, aliás, conhecermos muito bem a capacidade de empolameto de que José Magalhães há muitos anos faz alarde, e mesmo a sua, hábil quanto invariável, “cantata”, que lá consegue arrastar uns quantos menos avisados cidadãos, e teríamos ficado algo apreensivos com o déficit democrático do PM.

No entanto, José Magalhães, ele próprio, logo a seguir, continuando a transcrever VM, “diz” que “(…) Mesmo que a Constituição não diga expressamente que deve ser o Primeiro-ministro a comparecer na AR, desde há muito que é assim, independentemente dos governos, tendo-se criado portanto uma prática reiterada nesse sentido (…)”.

Se fôssemos a seguir religiosamente práticas bem mais reiteradas...

Ora vamos lá analisar a coisa. Eis, respeitável público, a gravíssima falta que, no entendimento de José Magalhães – socorrido por interposto articulista – Santana Lopes terá cometido: o PM não foi ao Parlamento discutir um assunto que estava mais do que debatido em praça pública, com todos os show-offs que interessavam ao BE e respectivos adereços, como a Constituição, aliás, o não obriga, mas enviou membros do governo, em cumprimento dos preceitos constitucionais. Eis, pois, a extrema gravidade de que falou VM e a que JM se ateve a mãos ambas, levando, agarrados ao capote, dois ou três incautos. Eis, enfim, a famigerada "hora negra"!

Há muitas formas de fazer política. José Magalhães já de há muito que nos habituou a esta sua. Muito peculiar, por sinal. Espremida…

Mas o que mais diverte – será que diverte mesmo, vindo de conscriptus pater? – é a falta de memória de que JM por vezes dá preocupantes sinais.

Então não é que o ilustre deputado esqueceu por completo a actuação que, precisamente neste capítulo, reiteradamente teve o então primeiro ministro, António Guterres, ainda nem vão passados três anos? E não consta que, na(s) oportunidade(s), tal opção do seu chefe lhe tenha causado apreensão semelhante.

José Magalhães parece bem precisado de ajuda farmacológica urgente, que lhe restitua a memória perdida. Lá pelos “passos”, evidentemente.

Ruvasa

8. Textos d’ontem - "O undécimo"

Crónica de rádio – 07 Jan 1986

O UNDÉCIMO

Olá, bom dia!

Nós, portugueses, temos uma característica muito sui generis.

Existe na nossa idiossincrasia uma certa capacidade auto-crítica que, não obstante por vezes revestir aspectos negativos, as mais das vezes resulta extremamente salutar, por actuar como válvula de escape de terríveis tensões, quantas vezes, frustrações não menos tremendas, quase sempre.

Uma tal capacidade só tem paralelo entre os ingleses e estes talvez até um pouco mais acidamente. Na verdade, não é qualquer povo que mostra a descontracção indispensável a ironizar com as próprias insuficiências e nonsense. É preciso, na verdade, dispor de uma mentalidade muito especial.

Quem sabe se tal faculdade não resulta, em proporção directa, da circunstância de sermos um povo muito vivido e, consequentemente, bem calejado? Tal como os ingleses, somos das nações concretamente definidas há mais tempo e atirámos connosco por esse mundo fora. E de tal forma que ainda hoje por lá andamos atirados. Que venha daí quem for capaz de apontar povo mais cosmopolita do que este nosso! Pois não é verdade que fomos mesmo nós quem mais contributos deu, e mais cedo, para o conceito de “aldeia global”?

Somos, pois, um punhado de gente com características muito curiosas, das quais a de nos rirmos de nós próprios, das nossas “menoridades” e até de apoucarmos feitos nossos que outros povos muito apreciariam tereme eles realizado, não é, certamente, a de menos valia.

Por vezes, contudo, abusamos. Olá, se abusamos!

As piadas, as anedotas que, a propósito de tudo e de nada, surgem como que de geração espontânea são, quantas vezes, tremendamente injustas, precisamente porque vão muito além da realidade e não têm em conta atenuantes que há que não desprezar.

A propósito da nossa entrada na CEE – feito a que me associo com todo o gosto e muita esperança, diga-se en passant -, correm já por aí mil e uma histórias, qual delas a mais curiosa e, as mais interessantes são, quiçá, as que alguns políticos da nossa praça por vezes “contam”, frente às câmaras de televisão, com a maior candura deste mundo.

Já faltou mais, caro ouvinte!...

Vai ver que, não tarda nada, aparece por aí humorista político de primeiríssima apanha que nos dirá, com o ar mais seráfico que se imagine, que a CEE – ela toda – se impacientava pela nossa adesão que tardava e quase nem dormia de ansiedade. Por sermos nós a salvífica panaceia da Comunidade. Não fazemos por menos!

Somos um povo muito desorganizado. Em tudo, praticamente. No humor, voluntário ou não, porém, somos absolutamente imbatíveis.

O undécimo – ou duodécimo? – membro da CEE é assim. Que se pode fazer? Nada. É deixar andar que, enquanto rirmos, estaremos vivos, a mexer e de boa saúde.

Bom dia!

Ruben Valle Santos

Sunday, September 19, 2004

7. Textos d'ontem - "O que acaba e o que começa"

Crónica de rádio – 31 Dez 1985

O QUE ACABA E O QUE COMEÇA

Olá, com dia, caro ouvinte!

Finalmente! Estamos no último dia de 1985. Finalmente!

O último dia de um ano que poucas boas recordações deverá ter deixado nas pessoas.

Foi, não restam dúvidas, um ano tremendamente difícil para todos. E nunca mais chegava ao fim. Chegou hoje. Haja Deus!


Sinceramente, não recordo outro em que tantas tragédias se tivessem abatido sobre os humanos cocurutos por esse mundo fora. Quedas de aviões, terramotos, erupções vulcânicas, atentados terroristas, desgraças e desgraças em série e sem fim.

O curioso – se de facto algo de curioso nisso existe – é que – recorda-se, ouvinte? – na sua esmagadora maioria haviam previsto que este 1985 seria o ano das tragédias. Foram mesmo muito enfáticos nas previsões. E então não é que acertaram em percentagem inimaginável?

É quase caso para dizer: Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!...

O que acabo de dizer não significa que haja da minha parte qualquer intuito de comparar astrólogos a bruxas. De modo nenhum, até pelo muito respeito que me merecem os primeiros e um certo temorzinho reverencial que nutro pelas segundas, Maga Patológica inclusa! Mas, caramba! Tanto acerto também é demais!

Como, ao que consta, as previsões dos mesmos senhores para o ano de 1986 são quase diametralmente opostas e unânimes, resta-nos, enfim, a esperança de que voltem a acertar…

Ao que dizem, Portugal está sob bons auspícios. Júpiter parece que entra no signo do País, pelo que tudo irá correr pelo melhor. Melhor possível, claro! Nada de euforias...

A tão ansiada recuperação começará a ser um belo facto. Não sendo já sem tempo e porque com ela todos teremos a lucrar, é bom que façamos uma “forcinha”, como diria o outro humorista em imitação pouco criativa de brasileiro da Barra da Tijuca.

É que, por mais que os astros se conjuguem e predisponham, se nós próprios nada fizermos por isso, ora adeus, minhas encomendas!

Mas, claro que podem contar connosco. Se somos nós os interessados maiores!

Aqui termino, caro ouvinte, fazendo votos de que se divirta muito na passagem do ano, que 1986 lhe traga aquilo que 1985 não quis ou não foi capaz e por que o ouvinte e eu e todos os nossos familiares e vizinhos e amigos e simples conhecidos há tanto ansiamos.

Seria bom, não concorda? E merecido também.

Bom dia e até para o ano.

Ruben Valle Santos

Friday, September 17, 2004

6. Textos d'ontem - "O Natal e a crise"

Crónica de rádio – 24 Dez 1985

O NATAL E A CRISE

24 de Dezembro de 1985 – Véspera do dia de Natal

Um Natal que para uns será de fartura e alegria, reunião de família, para outros de faltas e amargura. Para todos, porém, Natal, com tudo quanto significa.

Tendo conseguido o quase milagre de uma pequena pausa na agitação que constitui o meu quotidiano, dei, ontem à tarde, uma volta pela baixa de Setúbal.

E, quer saber, caro ouvinte? Fiquei siderado!


De tanto ouvir falar de crise, de a ter constatado pessoalmente em vários casos, habituara-me já à ideia de que ela – a crise – se generalizara e atingira toda a gente.

Aliás, as queixas são gerais e bem certo é que, como vozes mais autorizadas o afirmaram já, haverá fome em Setúbal. Isto, não obstante circunstâncias em que me vejo envolvido – por força de outra actividade que exerço numa das instituições de solidariedade da cidade – me levarem a desconfiar bastante de muito do que por aí se diz, visando efeitos que não estão bem esclarecidos.

Há, na verdade, casos desses, de fome, tão evidentes que não é possível escamoteá-los. E também dos outros – os que mais impressionam, por mais angustiantes – os da chamada pobreza envergonhada, aquela pobreza tão ou mais real do que a outra mas que, a todo o custo, evita manifestar-se, por questão de pudor.

Mas a crise não chegou a todos. Nunca chegará, aliás. Há sempre quem se salve. É sabido que as crises comportam também essa vertente. Enquanto muitos a sofrem na carne, outros recebem-na de braços abertos. É, como se sabe de há muito, em épocas de crise que grandes e súbitas fortunas se constroem. É dos livros e da experiência vivida!

Ontem à tarde, na pequena volta que dei pela baixa, uma vez mais constatei essa realidade.

Em meio de uma situação tão difícil como a que vivemos, o que mais se adquire – imagine! – é o supérfluo do supérfluo, se assim posso exprimir-me.

As casas cujo acesso mais difícil se mostrava, por se encontrarem, cheias de gente, eram precisamente as que comercializam o que mais facilmente é dispensável. Roupas e calçado de marca, brindes, jóias.

Vivemos, sem dúvida, em sociedade de consumo. Consumo pelo consumo.

Serve isto para dizer que talvez a crise não seja tão difícil de debelar como parece. Será que não dependerá de nós, em boa medida? Se pusermos um pouco deste nosso afã consumista de parte e nos preocuparmos seriamente com os valores reais de uma sociedade, estou certo de que melhores tempos virão mais depressa.

Não vou ao ponto de defender que nos privemos do essencial ou mesmo de tudo o que é supérfluo. Não, a minha concepção de sociedade, a minha postura ideológico-política não passa pela hipocrisia de afirmar que tudo o que é meu ao meu semelhante pertence também. Sempre ouvi dizer – e constatei a veracidade da sentença – que a caridade bem ordenada por nós começa.

Mas, caro ouvinte, será assim tão difícil abdicarmos de um pouquinho do que para nós é supérfluo e que para o nosso semelhante mais desfavorecido pode constituir – e constitui mesmo – o essencial para que sobreviva com um mínimo de dignidade? E não podemos vestir a pele da indiferença sobranceira, com a alegação de que o Estado é que tem a obrigação de prover a todos esses casos. A nossa parte nessa tarefa ninguém no-la cumpre. Teremos que ser nós. Não há modo de a ela nos furtarmos

Não sou – não sou mesmo! – melhor do que ninguém. Mas creia que já ofereci, também este ano, um pouco mesmo do que não me sobra. E sempre tenho verificado que não fico mais pobre. Pelo contrário…

Logo à noite, quando se cumprir mais um ano sobre o momento em que, em Belém, nasceu uma Criança, numa manjedoura, pense em outras crianças, também pobres, para quem o Natal poderia ser um pouco melhor.

E se não tem hábitos de religião e, portanto, a invocação de Cristo não o comove, então concentre-se na alegria espelhada nos olhos dos seus filhos, desembrulhando as prendas de Natal, e, com um pequeno esforço, tente imaginar os olhares de tantas outras crianças sem essa felicidade. E, recorde-se, as crianças são todas iguais e Natal não é só a 25 de Dezembro. Deve festejar-se todos os dias de cada ano. Esse é o espírito da quadra.

Um bom Natal para si, ouvinte, deseja-lhe o

Ruben Valle Santos

Thursday, September 16, 2004

5. Textos d'ontem - "Parabéns, Setúbal!"

Crónica de rádio – 17 Dez 1985

PARABÉNS, SETÚBAL!

Olá, bom dia, amigo ouvinte!

A crónica de hoje quase poderia ser umas das habituais de Natal.

A época é a própria, a disposição do cronista nesse sentido acentuada, estou em crer que o ouvinte não seria indiferente ao tema e o assunto de que seguidamente tratarei tem, ainda que possa não parecer, muito que o ligue à ideia que a generalidade das pessoas faz do Natal.

Não é verdade que Natal é sinónimo de tréguas, de paz, de concórdia? Ou devia ser, pelo menos?

Pois bem, falemos um pouco de tréguas, falemos um pouco de paz, falemos um pouco de concórdia.

No mundo conturbado em que nos movemos, o que se torna assustador é que o Homem, que deveria estar predisposto preferencialmente para o exercício do Bem, do que é justo, em ordem ao convívio harmonioso com o seu semelhante, tende excessivamente para o oposto.

Em condições normais, se houver que, com ganhos semelhantes, optar pelo Bem ou pelo Mal, cai quase exclusivamente nos domínios deste último. A natureza humana?

É um jogo em que entram o orgulho, o egocentrismo exacerbado, a ânsia de melhor afirmação pessoal, nem que, para isso, haja que calcar aos pés o incómodo semelhante.

É-lhe impossível reconhecer que o adversário detém, não toda, mas, ao menos, alguma da razão que para si próprio reivindica em exclusividade.

Trata-se de um jogo em que a humildade não consegue mínimo estatuto.

Daí as divergências, as querelas, os desentendimentos sem remédio, os conflitos armados. Daí tanto sofrimento evitável, tantas lágrimas vertidas, tantas vidas perdidas.

Dos três conceitos que deixo referidos, sabe-se que o de mais difícil concretização é o da concórdia. Tentemos, pois, ser realistas e deixemo-lo um pouco de lado, já que se se obtiver, no todo ou em parte, um pouco de tréguas, com uma pitada de paz, já poderemos dar-nos por felizes e realizados. Nos tempos que correm…

Vem isto a propósito da campanha eleitoral que há pouco teve lugar, quando da eleição dos órgãos autárquicos. Claro que não houve concórdia. E como consegui-la? Mas houve, isso sim e felizmente, tréguas e – por que não dizê-lo? – paz. O que em Setúbal é obra de monta!

Cabe aqui a confissão dos meus receios de que, durante a campanha, surgissem casos que todos devêssemos lamentar, não só pelos prejuízos, materiais e humanos, que poderiam causar, como pela falta de civismo que revelariam e que, em situações semelhantes em ocasiões anteriores, não deixaram de verificar-se.

É, pois, com todo o gosto que deixo aqui registado o clima de serenidade em que decorreram todos os actos conducentes à eleição dos novos autarcas setubalenses, por parte de todas as forças políticas envolvidas. Este facto não podia deixar de ser assinalado. Repito: em Setúbal é obra de monta!

É sinónimo de maturidade cívica que deve ser inscrito no livro branco da nossa vida em comum. Dá-nos a certeza de que estamos no bom caminho e de que a sociedade por que ansiamos não é tão utópica como poderíamos ser levados a crer.

Por tudo isto, é possível hoje dizer-se que estamos, nós, setubalenses, de parabéns. Tanto os que se consideram vencedores, com os que assim não são reconhecidos.

É isso: Parabéns, Setúbal!

Ruben Valle Santos

Wednesday, September 15, 2004

4. Textos d'ontem - "Fernando Pessoa e a gentalha"

Crónica de rádio – 10 Dez 1985

FERNANDO PESSOA E A GENTALHA
- a grandeza e a miséria -

Bom dia, caro ouvinte!

Não sei qual terá sido a sua reacção ao assistir, na RTP do nosso descontentamento, ao programa dedicado a Fernando Pessoa, por ocasião da celebração do 50º aniversário da sua morte.

Presumindo, todavia, que o ouvinte é português que preza os valores lusitanos e, assim, tem em bom apreço a obra pessoana e o seu autor, estou certo de que sofreu forte abalo.

Por mim, confesso ter sido tomado por profundo desgosto, me ter invadido tremenda revolta de que ainda não me refiz.

A princípio quedei-me atónito. Não, não podia ser. Tratava-se de mal-entendido. O que os autores do programa pretendiam reproduzir não era “aquilo”. O intuito era homenagear O Homem e a Obra. Apenas isso. Por motivos alheios à sua vontade, porém, dera-se uma troca de vídeos ou algo no género e, daí, aquela dejecção. Após o intervalo e corrigido o engano, tudo se modificaria e a verdade, a verdade completa, seria reposta.

Pura ilusão! Veio o intervalo e logo se verificou que não houvera qualquer engano. O que estava a ser transmitido era-o deliberadamente, conscientemente. E foi piorando.

Para os autores do programa e para quem permitiu a sua exibição, Fernando Pessoa, o maior vulto das Letras portuguesas, a par de Camões, mais não foi que um demente.

Não, ouvinte. Contrariamente àquilo que está a pensar, não desliguei o televisor. Por maior que seja a revolta, é forçoso que vejamos até ao fim. É imperioso que tomemos consciência plena de quem nos quer destruir como Povo e dos meios que lhe são facultados por instituições que todos sustentamos.

A técnica é sempre a mesma, obedecendo a critérios iguais e extremamente rigorosos.

Tudo e todos quantos possam contribuir para despertar a nossa consciência colectiva de povo adulto tem que ser destruído. Rápida, sistemática, inexoravelmente. Os exemplos não faltam.

Cavilosamente, com a mais refinada insídia, aproveita-se datas, comemorações, todas as oportunidades para, sob a capa da homenagem, se destruir o homenageado, instilando-se nos portugueses o veneno que implacavelmente irá corroendo até à morte o orgulho que nos vem dos nossos antepassados, dos valores por que sempre nos regemos, do Povo de corpo inteiro que efectivamente somos e que a uns quantos, instalados nos lugares que mais lhes convêm para a missão de que estão incumbidos, tantos engulhos causa.

E nós, cidadãos comuns, perdidos neste emaranhado que não procurámos mas em que nos vimos enredados, vamos assistindo a esta destruição e não reagimos. Não pode ser! Quem somos, afinal? Onde está a nossa consciência colectiva? Como é possível que fiquemos mudos e quedos perante tal descalabro?

O Homem, produto da sua própria circunstância, é também e acima de tudo a Obra que deixa.

E a Obra de Fernando Pessoa é grande, é sublime. Traduzida em todo o mundo civilizado, reconhecida como das maiores da literatura universal, não merece semelhante desaforo. É demais.

Foi para isto que Pessoa e todos quantos se elevaram acima da vil tristeza, trouxeram para Portugal o apreço do Mundo? Certamente que não!

Vamos reagir. Temos que reagir sem demora. O preço que pagaremos pela inacção será demasiadamente alto. Quem o quer suportar, quem o pode suportar?

Bom dia!

Ruben Valle Santos

Tuesday, September 14, 2004

3. Textos d'ontem - "Tolerância-a não desprezar"

Crónica de rádio – 03 Dez 1985

Tolerância - qualidade a não desprezar

O ritmo de vida da sociedade actual, para o qual decididamente não estávamos preparados, provoca-nos, quantas vezes, situações que, de modo nenhum, estariam nos nossos propósitos.

Vivemos numa sociedade cheia de tensões, todas elas resultantes da nossa incapacidade de dominar os acontecimentos. Há que reconhecer – sem esforço, aliás – que o Homem deixou de poder dispor de si e do seu tempo, vendo-se, cada vez mais, enredado numa teia que frequentemente lhe tolhe o discernimento e o leva a tomar atitudes que, em estado normal, jamais assumiria.

Quantas vezes, caro ouvinte, não se viu já metido em situações conflituosas – por vezes graves e sem saída – por motivos que, mais tarde e depois de reflexão calma, concluiu serem absolutamente fúteis, de modo nenhum justificando os dissabores por que passou?

Quem isto lhe diz, sem relutância confessa que já passou por alguns bem desagradáveis momentos desses, mais vezes até do que gostaria e deles não recorda ter retirado algo que não desgostos e amargos de boca.

E tudo porquê? Apenas porque, no momento certo, falta sabedoria que nos leve a parar um instante e a decidir tolerância para com o próximo.

Trata-se de uma questão complexa e que se embrenha muito no íntimo de cada qual. Uma questão de personalidade. Mas é bom não esquecer que a personalidade também se molda. É indispensável que se molde.

É sabida a dificuldade de ser-se tolerante. Quantas e quantias vezes a paciência justificadamente se nos esgota! Mas bom seria que tentássemos sempre precavermo-nos contra a intolerância que nos avassala. É que, se o não fizermos, um dia destes não será possível vivermos em comunidade. Cada vez mais seremos pequenos mundos fechados, eriçados de espinhos de que ninguém se atreverá a aproximar-se, no justificado receio de sair maltratado.

Não defendo a tolerância a todo o preço. Não, não é disso que se trata. Há limites para tudo. Até Jesus Cristo – a Tolerância Suprema – não se conteve e expulsou os vendilhões do Templo. Não Lhe era possível permitir situação tão degradante.

Há momentos em que, na verdade, não podemos transigir, não podemos assumir atitude de tolerância. Mas quantas vezes, podendo-o, o esquecemos?

Vamos, pois, tentar adquirir – ou readquirir – um pouco dessa característica tão esquecida? Vamos tentar melhorar o mundo em que vivemos?

Se o nosso patrão embirra connosco, com ou sem razão, se o nosso empregado não é tão diligente quanto achamos que deveria ser, se a nossa mulher ou o nosso marido não mostram por nós a compreensão a que nos julgamos com direito, se o automobilista, que deverá parar na passadeira para deixar que o peão atravesse a rua, não o faz, ou este não a atravessa com a presteza conveniente, se o nosso adversário político, nos ataques que contra nós desfere, vai além do que lhe é lícito, e em tantas outras ocasiões, por que não experimentarmos um pouco de tolerância para com eles?

Quem sabe se as faltas que cometem não resultam de dificuldades com que se debatam?

Bom dia!

Ruben Valle Santos

Monday, September 13, 2004

2. Textos d'ontem - "Portugal e os Portugueses"

Crónica de rádio – 26 Nov 1985

Portugal e os Portugueses

Olá, bom dia, caro ouvinte!

Nesta primeira vez que estou em contacto consigo, através das antenas desta excelente estação de rádio, gostaria de sugerir-lhe que, em conjunto, reflectíssemos um pouco sobre Portugal e os Portugueses.

Será reflexão muito sumária, dado o pouco tempo de que dispomos e talvez que esta não seja a hora mais propícia a grandes exercícios mentais, de raiz mais ou menos metafísica, porque a vida é dura e há que ganhá-la no quotidiano.

Mas reflictamos um pouco.

O que é Portugal? Quem são os Portugueses?

Um cronista mais apressado e inclinado ao uso de frases feitas diria que se trata de um “jardim à beira mar plantado”, povoado por gentes de “brandos costumes”. E ficaria provavelmente muito satisfeito com o achado. Só que… Pois é, só que muito ficaria por dizer. Precisamente o essencial.

É que esse tal jardim à beira mar plantado existe há mais de oitocentos anos e desde o seu nascimento soube afirmar-se de forma bem concludente entre os seus pares e estender a sua influência por todo o mundo. Foi até onde outros, de maiores recursos e aparentemente mais vocacionados, jamais se atreveram.

E essa gente de brandos costumes soube impor-se pela sua cordialidade, pelo seu intimorato espírito de aventura, pela incomparável capacidade de se miscigenar, dando e recebendo, num intercâmbio de culturas que só ela foi capaz de conceber, estabelecer e aprofundar.

Pequeno-grande país? Pequeno-grande povo?

Poderá parecer-lhe, caro ouvinte, um pouco estranha, talvez despropositada, esta crónica. Mas já pensou que a integridade de um país, a força do seu povo, jamais se perderão se esse povo for capaz de manter incólume e sempre presente a sua memória colectiva? E que nunca será demais reavivá-la?

Por vezes, com o fervilhar das preocupações quotidianas, temos tendência a privilegiar o acessório, esquecendo o essencial. É contra essa maré que devemos remar. Como contra as que tendem a levar-nos a menosprezar alguns valores que são perenes e dos quais jamais deveríamos afastar-nos.

Como país, como povo, passámos já por muitas dificuldades. Inúmeras vezes fomos postos à prova e assaltados pela dúvida. Em muitas ocasiões vimos em grande risco a nossa identidade nacional.

Soubemos sempre, todavia, arrostar com as dificuldades, vencê-las. Fomos sempre capazes de nos erguermos e de afirmar bem alto a nossa realidade. Por muito desesperada que fosse a situação, sempre nos mostrámos à altura e mantivemos acesa a chama da esperança. E vencemos, vencemos sempre! Os exemplos são incontáveis.

Não há, pois, razão para derrotismo, hoje que Portugal e os portugueses passam por mais um transe difícil. Há, sim, que confiar no povo que somos. Porque nós somos capazes! Em muitas coisas somos tão bons como os outros; em outras tantas, somos mesmo melhores.

Se o nosso destino colectivo não se apresenta ridente neste momento, não há que desesperar. Melhores dias virão. Continuemos a nossa luta. Todos juntos construiremos algo digno do povo que somos. Talvez mais cedo do que esperamos.

Há que manter a serenidade e que prosseguir o combate. Sem desfalecimentos. Portugal e os portugueses merecem-no. Nós merecemo-lo!

Bom dia!

Ruben Valle Santos

Friday, September 10, 2004

1. Opinar sem alicerces

Há na sociedade portuguesa, pelo menos na faixa populacional que aproveita as oportunidades que se lhe deparam para em público expor ideias, uma nítida confusão, no que se refere ao tema terrorismo, sua significação e até causas e efeitos.

Raramente tenho possibilidade de assistir ao programa “Opinião Pública” da Sic Notícias. A cada uma das poucas vezes em que me tem sido possível assistir, porém, mais vou chegando à conclusão de que os telespectadores que intervêm se revelam excessiva e incompreensivelmente opiniosos, acerca de tudo e de nada, porque acerca de tudo e de nada pouco sabem, por nitidamente não quererem informar-se. Na verdade, por via de regra, quem intervém nesses fora opinativos são aqueles cuja notória impreparação impede de ver mais longe, abrigando-se em opiniões que não passam de “verdades fechadas”, sem horizontes. E, como não podia deixar de ser, falsas.

É sabido que a sociedade portuguesa se debate com um verdadeiro e dificilmente ultrapassável problema de cultura a todos os níveis. E nem sequer estou a referir-me à cultura livresca, campo em que, então, estamos conversados! Refiro-me, isso sim, à cultura que é o saber de experiência feito de que falava Camões. E essa tremenda lacuna ressalta de forma evidentíssima na dificuldade que denotamos em assumirmos uma linha de pensamento coerente, digna de como tal ser considerada.

Discursamos o que nos vem à cabeça, no momento, a nossa verdade de ocasião, que, por isso mesmo, não passa de fogo fátuo, inconsequente, sem directriz, sem base de sustentação. Parecemos incapazes de, ao menos, pararmos um momento para testarmos os pressupostos do que afirmamos tão convictamente, sem que admitamos contradita. É o falar por ouvir dizer, o opinar por sugestão, sem base alguma, sem alicerces. E, assim, somos capazes de afirmar as maiores incongruências sem a mínima correspondência factual, com a maior das calmas, convicções e certezas. Convicções e certezas só possíveis em quem não sabe, não estuda, não se dá, sequer, ao trabalho de pensar racionalmente por um simples momento.

Vem isto a propósito do referido “Opinião Pública” desta manhã.

A quase totalidade dos opinadores que intervieram, encastoados em ideias feitas, assentes em nada, pura e simplesmente não faz a menor ideia do que seja “guerrilha” e “terrorismo”.

E de nada valeu ao comentador de serviço, especialista reconhecido de política internacional, explicar que uma coisa são actos de guerrilha, em conflito cuja finalidade consiste em alcançar determinado objectivo concreto, palpável e compreensível, aceitável numa palavra, como, a título de exemplo, a independência de um território, e outra bem diferente aquela que se consubstancia em actos de verdadeiro e real terrorismo, cuja meta não se confina à conquista de objectivo similar.

Enquanto que a guerrilha, uma vez alcançados os propósitos que a determinaram, cessa actividades, sem mais danos, e, a partir desse momento, é substituída por nova etapa, tendente a esbater animosidades e a estabelecer relações de convivência entre as partes até então em conflito, o real objectivo do terrorismo não se cumpre, não é entendido como alcançado, antes de que ocorra a total destruição física, mas não apenas física, do antagonista, seu verdadeiro e exclusivo alvo. O terrorismo não tem ideiais, não constrói; limita-se a marcar e atacar alvos, a destruir.

É preciso, porém, que as pessoas – a sociedade no seu conjunto – se capacitem da realidade que nos ensina que as coisas não são como as pensamos em noites de insónia. São apenas e tão somente como são. Ou entendemos isto de forma linear e sem demora ou arriscamos a perdermo-nos sem remissão, às mãos dos que querem e serão – se nada fizermos para os impedir – os nossos carrascos. Porque esta luta é de vida ou de morte. Para nós. Não para eles.

Se é bem verdade que há sempre a possibilidade de dialogar, discutir, concertar, chegar a um entendimento com guerrilheiros, tal já não é praticável com terroristas puros e duros.

De pouco valeu a Nuno Rogeiro, dele se tratava, ter chegado ao ponto de fundamentar o raciocínio com os exemplos dos movimentos de guerrilha com que, ao longo da história mais ou menos recente, tem sido possível estabelecer plataformas de entendimento e, uma vez alcançados os objectivos perseguidos, tudo terminar e, a contrario, com a impossibilidade de diálogo, de concertação com organizações de terror, de que a Al Qaeda é exemplo maior e mais perigosamente actuante nos dias que correm.

É que esta, como outras de igual estirpe, tem apenas um fito: liquidar o adversário, o inimigo, extinguindo-o, não importando os meios utilizados e as vítimas atingidas. Não tem mais objectivos. Territoriais ou outros.

Assim sendo, como é possível que haja quem desta verdade elementar não se tenha ainda apercebido e, assim, possa conceber viável o estabelecimento de contactos civilizados com quem nos aponta a arma ao peito com o único objectivo em mente de nos matar, extinguir a espécie que corporizamos? Ou mesmo conceber tréguas de qualquer espécie?

É certo que há quem pense de outro modo.
Mário Soares, por exemplo, mas não somente ele. Outros com responsabilidades têm seguido pela mesma trilha. Alguns estarão agora, talvez, em vias de arrependimento não confessado. O antigo presidente da república portuguesa veio há tempos a público defender a ideia do diálogo com os terroristas. O que nunca explicou – e pena foi que o não tivesse feito, para que ficássemos elucidados – foi a fórmula que usaria para início de tal presumivelmente fecundo/facundo diálogo. Já nem falo do termo feliz de tão coloquial troca de amabilidades e elegâncias. Limito-me a pretender descortinar a forma de a iniciar. É que a condição necessário-suficiente para que tal se verifique é cada uma das partes estar minimamente preparada para, cedendo, oferecer à outra um pouco do bem em disputa, para que nem tudo se perca. Ora, como é que alguém pode oferecer à parte contrária um pouco da sua vida, que é, única e simplesmente, o que o antagonista realmente pretende?

Daqui se retira que a tal falta de pensamento lógico, a ausência de coerência discursiva tão característicos dos portugueses, não se confina ao vulgar cidadão de rua. Não. Surge em qualquer estrato da “inteligentzia” lusa, pelos facilitismos que nos são inerentes e a aversão que temos em aprofundar os assuntos, os estudarmos, antes de que, publicamente, manifestemos opinião fundamentada, maturada, observada de todos os ângulos, pesados vantagens e inconvenientes.

Isso e a vanitas inalicerçada de sobre tudo e sobre todos discorrermos, antes de que alguém o faça, tomando-nos a dianteira, retirando-nos os duvidosos louros. O pormo-nos em bicos de pés, por falta de estatura suficiente.


Problema cultural, igualmente. Como bem se sabe.