Friday, September 10, 2004

1. Opinar sem alicerces

Há na sociedade portuguesa, pelo menos na faixa populacional que aproveita as oportunidades que se lhe deparam para em público expor ideias, uma nítida confusão, no que se refere ao tema terrorismo, sua significação e até causas e efeitos.

Raramente tenho possibilidade de assistir ao programa “Opinião Pública” da Sic Notícias. A cada uma das poucas vezes em que me tem sido possível assistir, porém, mais vou chegando à conclusão de que os telespectadores que intervêm se revelam excessiva e incompreensivelmente opiniosos, acerca de tudo e de nada, porque acerca de tudo e de nada pouco sabem, por nitidamente não quererem informar-se. Na verdade, por via de regra, quem intervém nesses fora opinativos são aqueles cuja notória impreparação impede de ver mais longe, abrigando-se em opiniões que não passam de “verdades fechadas”, sem horizontes. E, como não podia deixar de ser, falsas.

É sabido que a sociedade portuguesa se debate com um verdadeiro e dificilmente ultrapassável problema de cultura a todos os níveis. E nem sequer estou a referir-me à cultura livresca, campo em que, então, estamos conversados! Refiro-me, isso sim, à cultura que é o saber de experiência feito de que falava Camões. E essa tremenda lacuna ressalta de forma evidentíssima na dificuldade que denotamos em assumirmos uma linha de pensamento coerente, digna de como tal ser considerada.

Discursamos o que nos vem à cabeça, no momento, a nossa verdade de ocasião, que, por isso mesmo, não passa de fogo fátuo, inconsequente, sem directriz, sem base de sustentação. Parecemos incapazes de, ao menos, pararmos um momento para testarmos os pressupostos do que afirmamos tão convictamente, sem que admitamos contradita. É o falar por ouvir dizer, o opinar por sugestão, sem base alguma, sem alicerces. E, assim, somos capazes de afirmar as maiores incongruências sem a mínima correspondência factual, com a maior das calmas, convicções e certezas. Convicções e certezas só possíveis em quem não sabe, não estuda, não se dá, sequer, ao trabalho de pensar racionalmente por um simples momento.

Vem isto a propósito do referido “Opinião Pública” desta manhã.

A quase totalidade dos opinadores que intervieram, encastoados em ideias feitas, assentes em nada, pura e simplesmente não faz a menor ideia do que seja “guerrilha” e “terrorismo”.

E de nada valeu ao comentador de serviço, especialista reconhecido de política internacional, explicar que uma coisa são actos de guerrilha, em conflito cuja finalidade consiste em alcançar determinado objectivo concreto, palpável e compreensível, aceitável numa palavra, como, a título de exemplo, a independência de um território, e outra bem diferente aquela que se consubstancia em actos de verdadeiro e real terrorismo, cuja meta não se confina à conquista de objectivo similar.

Enquanto que a guerrilha, uma vez alcançados os propósitos que a determinaram, cessa actividades, sem mais danos, e, a partir desse momento, é substituída por nova etapa, tendente a esbater animosidades e a estabelecer relações de convivência entre as partes até então em conflito, o real objectivo do terrorismo não se cumpre, não é entendido como alcançado, antes de que ocorra a total destruição física, mas não apenas física, do antagonista, seu verdadeiro e exclusivo alvo. O terrorismo não tem ideiais, não constrói; limita-se a marcar e atacar alvos, a destruir.

É preciso, porém, que as pessoas – a sociedade no seu conjunto – se capacitem da realidade que nos ensina que as coisas não são como as pensamos em noites de insónia. São apenas e tão somente como são. Ou entendemos isto de forma linear e sem demora ou arriscamos a perdermo-nos sem remissão, às mãos dos que querem e serão – se nada fizermos para os impedir – os nossos carrascos. Porque esta luta é de vida ou de morte. Para nós. Não para eles.

Se é bem verdade que há sempre a possibilidade de dialogar, discutir, concertar, chegar a um entendimento com guerrilheiros, tal já não é praticável com terroristas puros e duros.

De pouco valeu a Nuno Rogeiro, dele se tratava, ter chegado ao ponto de fundamentar o raciocínio com os exemplos dos movimentos de guerrilha com que, ao longo da história mais ou menos recente, tem sido possível estabelecer plataformas de entendimento e, uma vez alcançados os objectivos perseguidos, tudo terminar e, a contrario, com a impossibilidade de diálogo, de concertação com organizações de terror, de que a Al Qaeda é exemplo maior e mais perigosamente actuante nos dias que correm.

É que esta, como outras de igual estirpe, tem apenas um fito: liquidar o adversário, o inimigo, extinguindo-o, não importando os meios utilizados e as vítimas atingidas. Não tem mais objectivos. Territoriais ou outros.

Assim sendo, como é possível que haja quem desta verdade elementar não se tenha ainda apercebido e, assim, possa conceber viável o estabelecimento de contactos civilizados com quem nos aponta a arma ao peito com o único objectivo em mente de nos matar, extinguir a espécie que corporizamos? Ou mesmo conceber tréguas de qualquer espécie?

É certo que há quem pense de outro modo.
Mário Soares, por exemplo, mas não somente ele. Outros com responsabilidades têm seguido pela mesma trilha. Alguns estarão agora, talvez, em vias de arrependimento não confessado. O antigo presidente da república portuguesa veio há tempos a público defender a ideia do diálogo com os terroristas. O que nunca explicou – e pena foi que o não tivesse feito, para que ficássemos elucidados – foi a fórmula que usaria para início de tal presumivelmente fecundo/facundo diálogo. Já nem falo do termo feliz de tão coloquial troca de amabilidades e elegâncias. Limito-me a pretender descortinar a forma de a iniciar. É que a condição necessário-suficiente para que tal se verifique é cada uma das partes estar minimamente preparada para, cedendo, oferecer à outra um pouco do bem em disputa, para que nem tudo se perca. Ora, como é que alguém pode oferecer à parte contrária um pouco da sua vida, que é, única e simplesmente, o que o antagonista realmente pretende?

Daqui se retira que a tal falta de pensamento lógico, a ausência de coerência discursiva tão característicos dos portugueses, não se confina ao vulgar cidadão de rua. Não. Surge em qualquer estrato da “inteligentzia” lusa, pelos facilitismos que nos são inerentes e a aversão que temos em aprofundar os assuntos, os estudarmos, antes de que, publicamente, manifestemos opinião fundamentada, maturada, observada de todos os ângulos, pesados vantagens e inconvenientes.

Isso e a vanitas inalicerçada de sobre tudo e sobre todos discorrermos, antes de que alguém o faça, tomando-nos a dianteira, retirando-nos os duvidosos louros. O pormo-nos em bicos de pés, por falta de estatura suficiente.


Problema cultural, igualmente. Como bem se sabe.