Friday, September 17, 2004

6. Textos d'ontem - "O Natal e a crise"

Crónica de rádio – 24 Dez 1985

O NATAL E A CRISE

24 de Dezembro de 1985 – Véspera do dia de Natal

Um Natal que para uns será de fartura e alegria, reunião de família, para outros de faltas e amargura. Para todos, porém, Natal, com tudo quanto significa.

Tendo conseguido o quase milagre de uma pequena pausa na agitação que constitui o meu quotidiano, dei, ontem à tarde, uma volta pela baixa de Setúbal.

E, quer saber, caro ouvinte? Fiquei siderado!


De tanto ouvir falar de crise, de a ter constatado pessoalmente em vários casos, habituara-me já à ideia de que ela – a crise – se generalizara e atingira toda a gente.

Aliás, as queixas são gerais e bem certo é que, como vozes mais autorizadas o afirmaram já, haverá fome em Setúbal. Isto, não obstante circunstâncias em que me vejo envolvido – por força de outra actividade que exerço numa das instituições de solidariedade da cidade – me levarem a desconfiar bastante de muito do que por aí se diz, visando efeitos que não estão bem esclarecidos.

Há, na verdade, casos desses, de fome, tão evidentes que não é possível escamoteá-los. E também dos outros – os que mais impressionam, por mais angustiantes – os da chamada pobreza envergonhada, aquela pobreza tão ou mais real do que a outra mas que, a todo o custo, evita manifestar-se, por questão de pudor.

Mas a crise não chegou a todos. Nunca chegará, aliás. Há sempre quem se salve. É sabido que as crises comportam também essa vertente. Enquanto muitos a sofrem na carne, outros recebem-na de braços abertos. É, como se sabe de há muito, em épocas de crise que grandes e súbitas fortunas se constroem. É dos livros e da experiência vivida!

Ontem à tarde, na pequena volta que dei pela baixa, uma vez mais constatei essa realidade.

Em meio de uma situação tão difícil como a que vivemos, o que mais se adquire – imagine! – é o supérfluo do supérfluo, se assim posso exprimir-me.

As casas cujo acesso mais difícil se mostrava, por se encontrarem, cheias de gente, eram precisamente as que comercializam o que mais facilmente é dispensável. Roupas e calçado de marca, brindes, jóias.

Vivemos, sem dúvida, em sociedade de consumo. Consumo pelo consumo.

Serve isto para dizer que talvez a crise não seja tão difícil de debelar como parece. Será que não dependerá de nós, em boa medida? Se pusermos um pouco deste nosso afã consumista de parte e nos preocuparmos seriamente com os valores reais de uma sociedade, estou certo de que melhores tempos virão mais depressa.

Não vou ao ponto de defender que nos privemos do essencial ou mesmo de tudo o que é supérfluo. Não, a minha concepção de sociedade, a minha postura ideológico-política não passa pela hipocrisia de afirmar que tudo o que é meu ao meu semelhante pertence também. Sempre ouvi dizer – e constatei a veracidade da sentença – que a caridade bem ordenada por nós começa.

Mas, caro ouvinte, será assim tão difícil abdicarmos de um pouquinho do que para nós é supérfluo e que para o nosso semelhante mais desfavorecido pode constituir – e constitui mesmo – o essencial para que sobreviva com um mínimo de dignidade? E não podemos vestir a pele da indiferença sobranceira, com a alegação de que o Estado é que tem a obrigação de prover a todos esses casos. A nossa parte nessa tarefa ninguém no-la cumpre. Teremos que ser nós. Não há modo de a ela nos furtarmos

Não sou – não sou mesmo! – melhor do que ninguém. Mas creia que já ofereci, também este ano, um pouco mesmo do que não me sobra. E sempre tenho verificado que não fico mais pobre. Pelo contrário…

Logo à noite, quando se cumprir mais um ano sobre o momento em que, em Belém, nasceu uma Criança, numa manjedoura, pense em outras crianças, também pobres, para quem o Natal poderia ser um pouco melhor.

E se não tem hábitos de religião e, portanto, a invocação de Cristo não o comove, então concentre-se na alegria espelhada nos olhos dos seus filhos, desembrulhando as prendas de Natal, e, com um pequeno esforço, tente imaginar os olhares de tantas outras crianças sem essa felicidade. E, recorde-se, as crianças são todas iguais e Natal não é só a 25 de Dezembro. Deve festejar-se todos os dias de cada ano. Esse é o espírito da quadra.

Um bom Natal para si, ouvinte, deseja-lhe o

Ruben Valle Santos