4. Textos d'ontem - "Fernando Pessoa e a gentalha"
Crónica de rádio – 10 Dez 1985
FERNANDO PESSOA E A GENTALHA
- a grandeza e a miséria -
Bom dia, caro ouvinte!
Não sei qual terá sido a sua reacção ao assistir, na RTP do nosso descontentamento, ao programa dedicado a Fernando Pessoa, por ocasião da celebração do 50º aniversário da sua morte.
Presumindo, todavia, que o ouvinte é português que preza os valores lusitanos e, assim, tem em bom apreço a obra pessoana e o seu autor, estou certo de que sofreu forte abalo.
Por mim, confesso ter sido tomado por profundo desgosto, me ter invadido tremenda revolta de que ainda não me refiz.
A princípio quedei-me atónito. Não, não podia ser. Tratava-se de mal-entendido. O que os autores do programa pretendiam reproduzir não era “aquilo”. O intuito era homenagear O Homem e a Obra. Apenas isso. Por motivos alheios à sua vontade, porém, dera-se uma troca de vídeos ou algo no género e, daí, aquela dejecção. Após o intervalo e corrigido o engano, tudo se modificaria e a verdade, a verdade completa, seria reposta.
Pura ilusão! Veio o intervalo e logo se verificou que não houvera qualquer engano. O que estava a ser transmitido era-o deliberadamente, conscientemente. E foi piorando.
Para os autores do programa e para quem permitiu a sua exibição, Fernando Pessoa, o maior vulto das Letras portuguesas, a par de Camões, mais não foi que um demente.
Não, ouvinte. Contrariamente àquilo que está a pensar, não desliguei o televisor. Por maior que seja a revolta, é forçoso que vejamos até ao fim. É imperioso que tomemos consciência plena de quem nos quer destruir como Povo e dos meios que lhe são facultados por instituições que todos sustentamos.
A técnica é sempre a mesma, obedecendo a critérios iguais e extremamente rigorosos.
Tudo e todos quantos possam contribuir para despertar a nossa consciência colectiva de povo adulto tem que ser destruído. Rápida, sistemática, inexoravelmente. Os exemplos não faltam.
Cavilosamente, com a mais refinada insídia, aproveita-se datas, comemorações, todas as oportunidades para, sob a capa da homenagem, se destruir o homenageado, instilando-se nos portugueses o veneno que implacavelmente irá corroendo até à morte o orgulho que nos vem dos nossos antepassados, dos valores por que sempre nos regemos, do Povo de corpo inteiro que efectivamente somos e que a uns quantos, instalados nos lugares que mais lhes convêm para a missão de que estão incumbidos, tantos engulhos causa.
E nós, cidadãos comuns, perdidos neste emaranhado que não procurámos mas em que nos vimos enredados, vamos assistindo a esta destruição e não reagimos. Não pode ser! Quem somos, afinal? Onde está a nossa consciência colectiva? Como é possível que fiquemos mudos e quedos perante tal descalabro?
O Homem, produto da sua própria circunstância, é também e acima de tudo a Obra que deixa.
E a Obra de Fernando Pessoa é grande, é sublime. Traduzida em todo o mundo civilizado, reconhecida como das maiores da literatura universal, não merece semelhante desaforo. É demais.
Foi para isto que Pessoa e todos quantos se elevaram acima da vil tristeza, trouxeram para Portugal o apreço do Mundo? Certamente que não!
Vamos reagir. Temos que reagir sem demora. O preço que pagaremos pela inacção será demasiadamente alto. Quem o quer suportar, quem o pode suportar?
Bom dia!
Ruben Valle Santos
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