Friday, October 08, 2004

14. Marcelo Rebelo de Sousa e a estratégia...

… mas também a caravana da hipocrisia, os idiotas úteis e os macacos de imitação.

A cada semana que passava, a cada comentário expendido, mais se tornava evidente que um desfecho como o que se verificou aconteceria a qualquer momento. Porque tudo obedecia a uma estratégia pensada e delineada por Marcelo Rebelo de Sousa naquelas longas vigílias nocturnas, que ele próprio faz gala em publicitar, e posta em execução com maestria e habilidade cirúrgica, diga-se em abono da verdade, no púlpito que lhe foi oferecido quando o estrado político lhe faltou sob os pés.

É que, a cada semana que passava, a cada comentário que expendia, mais se constatava um crescendo de oposição, luta política surda em causa própria, em contraponto a um decrescendo de análise fria, isenta, limpa e escorreita.

Antes de mais, é bom que se diga que este caricato quanto infeliz assunto tem que ser visto à luz de interesses pessoais, tanto quanto políticos, todos do foro marcelista. Exclusivamente.

Na verdade, esquecido do papel de comentador com que iniciara as suas dominicais performances analíticas, Marcelo Rebelo de Sousa entrou, a determinada altura, a lutar, pessoal e politicamente. Primeiro contra Durão Barroso e, depois, contra Santana Lopes. Primeiro, com suavidade, para não levantar a lebre e manter os folks calmos, depois já sem peso nem medida. E, aqui, entra a emoção, mais, muito mais do que a racionalidade. É que MRS jamais poderia aceitar de boa mente, sem de alguma forma ripostar, que, precisamente aqueles dois, seus antigos companheiros/adversários da “Nova Esperança”, em relação aos quais se sente melhor apetrechado, tivessem atingido patamar político que ele jamais conseguiu ou conseguirá. Esta circunstância, aliada a rivalidades velhas de 20 anos, não podia ter outros resultados.

Imagine-se três personagens:

O primeiro, José Manuel Durão Barroso, chega a chefe de governo, depois de conseguidas passagens por funções governativas de nível ministerial e, sempre em ascensão, a presidente da Comissão Europeia; o segundo, Pedro Santana Lopes, obtém algumas boas vitórias junto do eleitorado, vitórias tanto mais valiosas quanto inesperadas e num verdadeiro contra tudo e todos, uma delas antes igualmente tentada, sem qualquer sucesso, pelo próprio MRS, culminando com uma também ascensão a PM, um tanto rocambolesca, que nem ao próprio agradou, mas que amanhã pode reverter em mais um êxito assinalável; finalmente, o terceiro, ele próprio, Marcelo Rebelo de Sousa, a poder exibir como maior troféu político, portas afora do partido de que é membro, o cargo de Presidente da Assembleia Municipal de Celorico de Basto.

E quem é o simples mortal – por maior inteligência e até cordialidade social, fair play que possa exibir – que, dispondo da arma de que MRS dispunha, de semanalmente entrar nas casas das pessoas e, sem o mínimo contraditório – o que nem constitui qualquer mácula, como por aí se pretende agora insinuar – poder dizer o que melhor aproveitasse aos seus desígnios, a não agarraria a mãos ambas? Ninguém, certamente. Muito menos, pois, um político que o é, sempre o foi, jamais deixará de o ser, mas que os eleitores nunca avalizaram, recusando-lhe o acesso ao tal estrado.

Perante estas evidências, que fazer? Sim, porque algo havia que fazer, sob pena de uma certa aura correr o risco de ficar perdida em qualquer canto esconso.

Marcelo Rebelo de Sousa alterna a genialidade mais exaltante com momentos de uma vulgaridade extremamente menorizante. Yes, nobody’s perfect

Esta a razão por que foi possível que, semanalmente, em quatro anos, o tivéssemos visto e ouvido discorrer brilhante e fluentemente, de modo inigualável mesmo, sobre temas difíceis e quase inabordáveis para qualquer outro, em alternância com discursos de insuspeitada fragilidade conceptual, política e social.

Riscos que inevitavelmente corre quem, por força da essência das coisas e da humana condição, feita de fraquezas, não consegue fugir ao afã de opinar sobre tudo e todos, a todos notando como a meninos de escola, em exposição permanente, à procura de algo que lhe anda fugidio e que talvez jamais consiga encontrar, persistindo neste frenesim, impeditivo de reflexão mais cuidada e ponderada, que certamente lhe proibiria a tomada de posições pouco condizentes com o estatuto de que se reclama e que, na realidade, lhe é devido.

No decurso desses quatro anos, foi construindo uma imagem de maior serenidade, mais de acordo com o que entenderá que o eleitorado prefere. Aqui e ali, como se disse atrás, com alguns percalços, é certo, mas mantendo quase sempre a pose adequada. Não há, todavia, bem que sempre dure, nem irrequietude que se mantenha aquietada... Passados os tais quatro anos de maior visibilidade, com actuação política privilegiada, porque sem custos, mínimos que fossem, estava chegada a hora de dar início à valsa final, à revanche inadiável. Estava chegado o calendário.

Havia, pois, que criar mais um facto político - e este de estrondo - que, provocando o sobressalto adequado, se constituísse pedra de toque do arranque em direcção aos reais objectivos, o pessoal e o político, que prossegue.

Ora, que melhor facto político do que uma reacção de desagrado da “sua” gente face à actividade que vem desenvolvendo, corrosiva, de desgaste permanente? Aí estava o álibi perfeito para a entrada no Olimpo!

Se bem pensado, melhor executado. De provocação em provocação, a cada passo aumentando a graduação do acinte, lá foi conseguida a tão desejada reacção. Que, em abono da verdade, foi pouco menos do que pírrica. Realmente, o ministro veio dizer duas ou três coisas absolutamente triviais, sem a mínima importância ou peso, que muitos na rua já dizem há imenso tempo. Para tal circunstância, a reacção querer-se-ia, no mínimo, mais trovejante. É que há momentos em que é mesmo preciso dar o tal murro na mesa. E foi o que o ministro não fez, pois que, como que a medo, se limitou a gaguejar uma insatisfação e uma surpresa. Insatisfação, pelo modo como o governo vinha a ser tratado, para tal se chegando a mentiras, como alegou, e surpresa pelo facto de a entidade fiscalizadora da actividade audiovisual não ter julgado ainda necessário intervir, inquirindo como lhe compete.

Tendo surgido a reacção, MRS, que tanto a procurara, tão afincadamente por ela trabalhara, não a podia deixar passar incólume. Não faria mesmo sentido que desperdiçasse a oportunidade de toda uma vida.

Não desperdiçou. Sem que alguém lho tenha sequer sugerido, “demitiu-se”.

O que é curioso é que o fez sem azedumes, sem palavras, sem explicações, sem esclarecimentos. Por que sempre é melhor, nestas circunstâncias, deixar a dúvida no ar, já que o princípio jurídico in dubio pro reo aqui não funciona, até porque o reo apenas é subrepticiamente sugerido, nada mais. Muito pelo contrário, como é bem sabido, nestes casos o reo é sempre “culpado”.

E eis-nos, agora, chegados a um novo ponto de partida. Que melhor posicionamento, na grelha e no timing, para uma corrida a Belém do que a deste político, travestido de comentador, que, olhando-se no embaciado espelho lá de casa, se vê dono da Direita, sedutor do Centro e talvez mesmo simpático para a Esquerda, já que afronta os próprios apaniguados, tornando-se vítima indefesa dos seus tenebrosos desígnios?

Há que reconhecer que uma tal estratégia de médio prazo – porque isto iria verificar-se com Durão, tal como se verificou com Santana, se não por um motivo, por outro qualquer – tem assinatura de brilhantismo. Como brilhantes são os cenários políticos que MRS amiúde se entretém a decorar, a título de exercício para não perder o jeito. No entanto, como todas as mais conseguidas encenações teatrais, não está isenta de vícios e erros, alguns dos quais de palmatória e só possíveis de acontecer, porque nascidos de situações de recalcamento emocional que levam à comissão de deslizes mais ou menos graves.

O primeiro, está na circunstância de se dar por adquirido o que adquirido não está de forma nenhuma, ou seja, o eleitorado “próprio”. Pela forma como sempre esteve na política, Marcelo Rebelo de Sousa, a despeito de reconhecido como mente verdadeiramente superior, capaz de gizar planos e estratégias que nem a Satan, transmudado em Maquiavel, lembrariam e com uma assombrosa capacidade de trabalho, jamais conseguiu convencer os próprios correlegionários. Foi um dia, é certo, alcandorado a presidente do seu partido, mas sem grandes entusiasmos dos próprios apoiantes de serviço. E a sua acção, enquanto no trono partidário, não se mostrou suficientemente hábil para arrebatar faixas significativas de militantes e simpatizantes do Partido Social Democrata. É inquestionável que lhe falta o carisma tão necessário aos grandes líderes, além de se mostrar demasiadamente inquieto para os gostos do cidadão comum que da vida e das suas vertentes tem uma visão bem mais calma e tranquila, pouco o atraindo as grandes, sucessivas e súbitas mudanças de trajectória, principalmente se em caminhos que não conhece bem.

Depois, após o desempenho como o que teve nos tempos mais próximos, com especial relevo para os das últimas semanas, é evidente aos olhos de qualquer observador que não conquistou aderentes no PSD, menos ainda no Partido Popular onde, aliás, tem “amigos” de estimação, eles também resultantes do seu peculiar modo de politicamente agir. Mas apenas politicamente?! Para além de outros episódios mais longínquos, é preciso não esquecer o sucedido com a pré-defunta nova AD, nas condições que são conhecidas, quando MRS era o presidente social-democrata.

Finalmente, inconquistado o eleitorado, natural, digamos assim, não é líquido – dir-se-á que lhe será mesmo impossível – que consiga chamar a si os eleitores da Esquerda. Ninguém em seu perfeito juízo entenderá de bom aviso apoiar um candidato tão volátil, tão pouco controlável, tão imprevisível, tão capaz, acima de tudo, de rasteirar os próprios parentes políticos. As pessoas prezam muito um mínimo de estabilidade, um mínimo de previsibilidade, para saberem com o que contam e, assim, não apreciariam ter em Belém um Chefe de Estado que constituísse um foco de permanente agitação e conflito. Algo parece ter sido aprendido com a pouco equânime e ainda menos equilibrada actuação de Mário Soares, nos seus últimos anos em Belém. E felizmente que assim é, porque de contrário, o crime sempre compensaria.

Por aqui se vê, pois, que até as mais exaltantes estratégias têm os seus pontos fracos e mesmo os seus grandes equívocos. E que basta um só, na base de todo o edifício, para que tudo o mais impluda. Que é o que vai suceder. Inapelavelmente.

Entretanto, em toda esta última fase do processo têm vindo a aparecer, comme d’habitude, aliás, não só a estafada caravana da hipocrisia, procissão recorrente dos vencidos da vida e, como tal, rancorosos da política portuguesa, bem como a chusma de idiotas úteis, também eles sempre presentes nestes banquetes, muito embora ainda não tenham percebido que o seu papel é sempre o do enganado e desfrutado.

A primeira, constituída por todos quantos, embora nunca tivessem simpatizado com as manobras marcelistas, agora vêem nele o instrumento ideal para o combate político contra o governo, já que as tácticas até aqui por si próprios gizadas não deram os frutos apetecidos.

Os segundos, os que, de estatura intelectual e política pouco menos do que anã, vêem nestes episódios oportunidades únicas de, correndo a apanhar as canas de foguetes que a sua própria incapacidade obrigou a que esperassem que outros lançassem, vingarem afrontas ou derrotas antigas, jamais esquecidas.

Claro que uns e outros nada de substancial lucrarão com o evento, porque não é lógico, nem justo, que algo se obtenha sem trabalho sério e transpirado e este, não o sendo, não pode oferecer dividendos que mereçam ser considerados. No entanto, convictos de que sim, algo hão-de lucrar, irão festejar-se mútua e exuberantemente, por antecipação ao que não chegará a acontecer-lhes.

Por fim, é bom que não se esqueça que é também nestas alturas que têm tendência a surgir em cena, apressados e estouvados como são, de natureza própria, os macacos de imitação. Que já por aí andam, como se viu.



NB.- O que não está também ainda explicado e que seria muito interessante conhecer é em que medida a truculência marcelista estaria a interferir com as negociações em que a Media Capital parece ter estado envolvida com várias entidades. Talvez que o saber-se isto lançasse luz mais forte e clara sobre todo o assunto.

Ruvasa
2004Out07