Friday, January 20, 2006

35. O escândalo

A Comissão Nacional de Eleições (CNE) tem, desde a tarde de hoje, disponível no seu site a informação de que enviou ontem, 19 de Janeiro, para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) os resultados verificados na eleição dos órgãos das autarquias locais, realizada em 9 de Outubro de 2005.

Do mesmo modo disponibilizou esses dados no referido site. Na verdade, é já possível consultar os resultados da votação (em números e percentagens) e bem assim os nomes dos 40 e tal mil eleitos.

Além daquela relevantíssima informação, incluiu outro tipo de elementos que, quiçá por revelarem muito de como as coisas se processam em Portugal, causam funda preocupação e talvez respondam a muitas perplexidades, designadamente, à questão de os alunos portugueses serem muito mauzinhos em Matemática. Pelos vistos, sem remédio, por muitos e bons anos...

Sejamos concretos e objectivos.

* * *

Comecemos por conhecer o que dispõe a lei, quanto à composição das assembleias de apuramento geral:

Lei Orgânica 1/2001, 14 Agosto
(Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais)

CAPÍTULO II
Apuramento geral

Artigo 141º
Assembleia de apuramento geral

1 - O apuramento dos resultados da eleição compete a uma assembleia de apuramento que funciona junto da câmara municipal. (…)

Artigo 142º
Composição

As assembleias de apuramento geral têm a seguinte composição:

a) Um magistrado judicial ou o seu substituto legal ou, na sua falta, um cidadão de comprovada idoneidade cívica, que preside com voto de qualidade, designado pelo presidente do tribunal da relação do distrito judicial respectivo;

b) Um jurista designado pelo presidente da assembleia de apuramento geral;

c) Dois professores que leccionem na área do município, designados pela delegação escolar respectiva;

d) Quatro presidentes de assembleia de voto, designados por sorteio efectuado pelo presidente da câmara;

e) O cidadão que exerça o cargo dirigente mais elevado da área administrativa da respectiva câmara municipal, que secretaria sem direito a voto.


Por aqui se vê que o legislador teve o cuidado de entregar a composição da Assembleia de Apuramento Geral a pessoas que, em princípio, para tal estarão tecnicamente qualificadas e, em princípio também, dispõem, em alto grau, da noção da responsabilidade que envolve a missão que àquela assembleia é cometida.

Vejamos, agora, o que prescreve a mesma lei, acerca do critério de eleição e da forma de apuramento dos resultados e da distribuição dos mandatos.

Artigo 13º
Critério de eleição

A conversão de votos em mandatos faz-se de acordo com o método de representação proporcional correspondente à média mais alta de Hondt, obedecendo às seguintes regras:

a) Apura-se, em separado, o número de votos recebidos por cada lista no círculo eleitoral respectivo;

b) O número de votos apurados por cada lista é dividido, sucessivamente, por 1, 2, 3, 4, 5, etc., sendo os quocientes alinhados pela ordem decrescente da sua grandeza numa série de tantos termos quantos os mandatos que estiverem em causa;

a) Os mandatos pertencem às listas a que correspondem os termos da série estabelecida pela regra anterior, recebendo cada uma das listas tantos mandatos quantos os seus termos na série;

b) No caso de restar um só mandato para distribuir e de os termos seguintes da série serem iguais e de listas diferentes, o mandato cabe à lista que tiver obtido o menor número de votos.

Isto posto, mostremos um exemplo simples. Aliás, deve dizer-se que simples, básica mesmo, em termos matemáticos, é a aplicação do método de Hondt. Como se vai ver já de seguida:

Suponhamos que, a determinado órgão, a que estão atribuídos 5 mandatos, concorreram três partidos. Os resultados em termos de votação foram os seguintes

Partido A...........Partido B..........Partido C
500 votos..........300 votos.........25 votos

Procedamos, agora, à aplicação do método de Hondt, a fim de distribuirmos os 5 mandatos em disputa e determinemos quais os quocientes que atribuirão os mandatos, segundo o critério de atribuir o mandato ao partido que, em cada ocasião, apresente o quociente mais alto.

.....................Partido A.......Partido B.......Partido C
Divisão por 1....500.......... ...300..............25
Divisão por 2....250..............150..............12,5
Divisão por 3....166,66..........50............... 8,33
Divisão por 4....125..............75................6,25
Divisão por 5....100..............60................5

Assim sendo, vamos então atribuir os mandatos, de acordo com os quocientes obtidos:

Partido A..........Partido B..........Partido C
500 (1)...........300 (2)............25
250 (3)...........150 (5)............12,5
166,66 (4).......50...................8,33
125.................75....................6,25
100.................60....................5

Significa isto que o Partido A obteve três mandatos (1º, 3º e 4º), o partido B dois mandatos (2º e 5º) e o partido C não obteve qualquer mandato.

Simples e elementar, como se vê! Qualquer miúdo do ensino básico percebe isto e consegue aplicá-lo…

Mas… vejamos mais:

A CNE colocou igualmente à disposição de todos os cidadãos que a desejem, mais informação.

Em assembleias de apuramento geral (AAGs) dos 308 concelhos do País, verificou-se que

* em 24 casos, de 21 AAGs, fazendo tábua rasa da lei e da informação que lhes estava disponibilizada, atribuiu-se ao órgão de que se tratava número de mandatos diverso do que está legalmente fixado, pelo que foram eleitos mais ou menos candidatos do que a lei permite; confira aqui

* Em 91 casos, ocorridos em 69 AGGs, por deficiente aplicação do método de Hondt, verificou-se erro grosseiro na sequência dos mandatos atribuídos;

* Em 76 desses 91 casos, correspondentes ao trabalho de 56 AAGs, embora os erros não tenham influenciado o resultado final, ou seja, nenhuma força política tenha sido lesada em qualquer mandato, o certo é que o trabalho feito deixa muito a desejar, evidenciando mesmo muita falta de competência e zelo; confira aqui

* No entanto, em 15 dos mesmos 91 casos, correspondentes à acção de 13 AAGs, o ocorrido reveste-se já de muita gravidade, porque terá havido influência nos resultados finais, ou seja, terá acontecido cidadãos serem eleitos sem que a força política cujas listas integravam tivesse obtido votos que a tal fizessem jus, tendo, em contrapartida, visto os seus anseios frustrados outros cidadãos, cuja força política em que se acolhiam terá obtido os votos necessários para o efeito. confira aqui

Tudo isto pode ser constatado, seguindo os links acima indicados.

Lê-se e não se acredita! Como é possível?

Diga-se o que se disser, invoque-se o que se invocar, nada parece justificar tais erros. Menos ainda se tivermos em consideração que resultam da não observância de preceitos legais que os intervenientes nas AAGs não podem ignorar e de que menos ainda podem fazer tábua rasa.

É que é preciso não esquecer a qualidade em que metade deles ali está, ou seja, a de juiz de direito, a de jurista por aquele escolhido e a de professores, por esse motivo expressamente nomeados. Todos, portanto, gente supostamente especializada, a quem a lei cometeu tarefas perfeitamente adequadas à sua especialização.

O que se constata é, pois, um escândalo! Não poupemos nas palavras nem façamos uso de figuras de estilo. Chamemos, antes, os bois pelos nomes. O que aconteceu é um escândalo! Digno de figurar nos anais de vergonha de país terceiro-mundista!

E cabe aqui perguntar:

1 – Será que é admissível que se acredite que tudo fica a dever-se a simples ignorância?

2 – Ou a questão resume-se a um caso de menor atenção a trabalho de tamanha responsabilidade?

3 – Mas se assim é – qualquer dos casos anteriores – em que tipo de profissionais é que se pode confiar em Portugal?

4 – Será que não existe a consciência de que erros destes - resultantes de postura descuidada ou menos adequada - ferem, profundamente ferem de morte, a democraticidade de acto tão relevante para a vida de uma sociedade humana quanto uma eleição política, qualquer eleição política?

5 – Teremos que ser levados a crer que a irresponsabilidade em Portugal atingiu tais níveis que nem agentes que nos habituámos a considerar imunes a tal pecado, escapam às suas malhas?

6 – Tão exigentes e reclamantes-vociferantes que somos, quanto aos direitos que nos assistem, logo nos travestindo de ingénuos distraídos quando se trata de observarmos os deveres a que estamos obrigados?

7 – Mas, afinal, em que país vivemos e que sociedade queremos e estamos a construir?

8 – E que queremos legar às gerações que hão-de suceder-nos, essas gerações de que fazem parte já os tão propagandeados e ostracisados alunos portugueses mauzinhos a Matemática?

9 – E como podiam eles, pobres jovens, não ser assim mauzinhos, quando quem os ensina…

10 –
Haverá remédio para nós? Ainda?!

11 – Ou apenas nos resta, também nesta vertente, ansiar pela IV República, que tanto tarda a chegar?...

NB.- Mais um pequeno esclarecimento se impõe prestar:
...
Ainda que uma qualquer instância, situada a jusante das Assembleias de Apuramento Geral, detecte tais graves erros e os queira corrigir, está, desde logo, impedida de o fazer, em virtude de as decisões das AAGs terem, então, transitado já em julgado e serem, nessas condições, absolutamente insusceptíveis de alteração.
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Sunday, January 08, 2006

34. O respeito devido à dignidade pessoal...

O respeito devido à dignidade pessoal
...
e outras coisas

Soares-capa-Expresso-7Jan.jpg Posted by Picasa Click para ampliar


Em desespero de causa, Mário Soares tem vindo diariamente a queixar-se das “patifarias” com que a Comunicação Social, também diariamente, o presenteia.

Não gosto nem um pouco de Soares. Nunca gostei, diga-se em abono da verdade e vou mesmo mais longe: ao contrário de uma certa ideia por aí sempre muito instilada no espírito de cidadãos menos atentos e vocacionados para análises mais profundas, para além das ilusórias aparências, entendi sempre que o homem não tem aquele espírito democrático e bonacheirão com que sempre foi mostrado. Muito pelo contrário, por detrás do manto diáfano da fantasia, esteve sempre camuflada a nudez crua da verdade. E a verdade é, em minha opinião, que Soares foi sempre – e continua a ser – um chefe autoritário, deus todo-poderoso, a quem ninguém se poderia opor, sem sofrer as consequências, por mais razões que lhe assistissem. Uma breve retrospectiva do que foram estes últimos 30 anos provará à evidência e à saciedade o que afirmo.

Sou, contudo, igualmente de opinião de que o homem tem razão para se queixar amargamente, desta vez.

Efectivamente, a Comunicação Social, a única instância do país que dispõe de poder real – poder que faz e desfaz governos e outros poderes legítimos não deixados à solta, poder que faz e desfaz reputações sempre a coberto da maior das impunidades, poder que, como se vê, não é enformado da mais linear e insignificante das características de qualquer poder democrático, porque é o único não escrutinado e porque jamais alguém foi capaz de legislar, no sentido de o conter dentro das baias democráticas – tem vindo a entreter-se a escarafunchar-lhe os piores momentos da triste campanha que vem desenvolvendo.

A CS tem, pois, vindo a alcandorá-lo a estrela-diva do bufo espectáculo ad-presidencial. Sempre, porém, pelas piores razões. Sempre. Com razão ou sem ela. Inexorável e execrável.

E as coisas têm-se deteriorado de tal forma que até o Expresso, jornal geralmente considerado de referência e respeitável – esta já não é, de há muito, a minha opinião – se presta a entrar no jogo das indecências.

Na verdade, a capa da sua última edição – de 7 de Janeiro – exibe uma fotografia de Soares, que o mais elementar dos respeitos devidos à dignidade pessoal de cada homem deveria ter imposto aos responsáveis pela paginação, a começar pelo director do jornal, que não exibissem. Mas não apenas pela dignidade do retratado; também – e talvez em maior medida – pela própria dignidade dos autores da façanha, que me parece terem ficado muito mal retratados na foto.

O Expresso não tem o direito de cometer tamanha sacripantice. O Expresso – os seus responsáveis – têm o estrito dever de se coibir de alinhar em campanhas de política suja e – peço desculpa, mas é o termo que mais se adequa ao caso – ranhosa.

É certo que Soares estava a pedi-las. Tal facto, porém, não “angeliza” os expressos brincalhões da treta.

Entendo que, por uma questão de dignidade – própria, evidentemente – o Expresso deve apressar-se a apresentar desculpas à sua vítima, no caso indefesa. Será que haverá no Expresso, ao nível decisório, quem tenha um pouco de vergonha na cara e… dignidade, já agora?

* * *

Quanto a Mário Soares, estou do lado dele como pessoa – por entender que o que lhe foi feito não se faz a ninguém. Por muito que o mereça. E Soares, o político, merece-o, sem dúvida.

No entanto, talvez que agora, em face de algumas patifarias que lhe estão a ser feitas por poderes não escrutinados e claramente antidemocráticos, consiga aperceber-se da real dimensão das ignomínias que o mesmo poder praticou relativamente a Pedro Santana Lopes, mas, neste caso, elevado à 15ª potência!

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