35. O escândalo
Do mesmo modo disponibilizou esses dados no referido site. Na verdade, é já possível consultar os resultados da votação (em números e percentagens) e bem assim os nomes dos 40 e tal mil eleitos.
Além daquela relevantíssima informação, incluiu outro tipo de elementos que, quiçá por revelarem muito de como as coisas se processam em Portugal, causam funda preocupação e talvez respondam a muitas perplexidades, designadamente, à questão de os alunos portugueses serem muito mauzinhos em Matemática. Pelos vistos, sem remédio, por muitos e bons anos...
Sejamos concretos e objectivos.
* * *
Comecemos por conhecer o que dispõe a lei, quanto à composição das assembleias de apuramento geral:
Lei Orgânica 1/2001, 14 Agosto
(Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais)
CAPÍTULO II
Apuramento geral
Artigo 141º
Assembleia de apuramento geral
1 - O apuramento dos resultados da eleição compete a uma assembleia de apuramento que funciona junto da câmara municipal. (…)
Artigo 142º
Composição
a) Um magistrado judicial ou o seu substituto legal ou, na sua falta, um cidadão de comprovada idoneidade cívica, que preside com voto de qualidade, designado pelo presidente do tribunal da relação do distrito judicial respectivo;
b) Um jurista designado pelo presidente da assembleia de apuramento geral;
c) Dois professores que leccionem na área do município, designados pela delegação escolar respectiva;
d) Quatro presidentes de assembleia de voto, designados por sorteio efectuado pelo presidente da câmara;
e) O cidadão que exerça o cargo dirigente mais elevado da área administrativa da respectiva câmara municipal, que secretaria sem direito a voto.
Por aqui se vê que o legislador teve o cuidado de entregar a composição da Assembleia de Apuramento Geral a pessoas que, em princípio, para tal estarão tecnicamente qualificadas e, em princípio também, dispõem, em alto grau, da noção da responsabilidade que envolve a missão que àquela assembleia é cometida.
Vejamos, agora, o que prescreve a mesma lei, acerca do critério de eleição e da forma de apuramento dos resultados e da distribuição dos mandatos.
Artigo 13º
Critério de eleição
a) Apura-se, em separado, o número de votos recebidos por cada lista no círculo eleitoral respectivo;
b) O número de votos apurados por cada lista é dividido, sucessivamente, por 1, 2, 3, 4, 5, etc., sendo os quocientes alinhados pela ordem decrescente da sua grandeza numa série de tantos termos quantos os mandatos que estiverem em causa;
a) Os mandatos pertencem às listas a que correspondem os termos da série estabelecida pela regra anterior, recebendo cada uma das listas tantos mandatos quantos os seus termos na série;
b) No caso de restar um só mandato para distribuir e de os termos seguintes da série serem iguais e de listas diferentes, o mandato cabe à lista que tiver obtido o menor número de votos.
Isto posto, mostremos um exemplo simples. Aliás, deve dizer-se que simples, básica mesmo, em termos matemáticos, é a aplicação do método de Hondt. Como se vai ver já de seguida:
Suponhamos que, a determinado órgão, a que estão atribuídos 5 mandatos, concorreram três partidos. Os resultados em termos de votação foram os seguintes
Partido A...........Partido B..........Partido C
500 votos..........300 votos.........25 votos
Procedamos, agora, à aplicação do método de Hondt, a fim de distribuirmos os 5 mandatos em disputa e determinemos quais os quocientes que atribuirão os mandatos, segundo o critério de atribuir o mandato ao partido que, em cada ocasião, apresente o quociente mais alto.
.....................Partido A.......Partido B.......Partido C
Divisão por 1....500.......... ...300..............25
Divisão por 2....250..............150..............12,5
Divisão por 3....166,66..........50............... 8,33
Divisão por 4....125..............75................6,25
Divisão por 5....100..............60................5
Assim sendo, vamos então atribuir os mandatos, de acordo com os quocientes obtidos:
Partido A..........Partido B..........Partido C
500 (1)...........300 (2)............25
250 (3)...........150 (5)............12,5
166,66 (4).......50...................8,33
125.................75....................6,25
100.................60....................5
Significa isto que o Partido A obteve três mandatos (1º, 3º e 4º), o partido B dois mandatos (2º e 5º) e o partido C não obteve qualquer mandato.
Simples e elementar, como se vê! Qualquer miúdo do ensino básico percebe isto e consegue aplicá-lo…
Mas… vejamos mais:
A CNE colocou igualmente à disposição de todos os cidadãos que a desejem, mais informação.
Em assembleias de apuramento geral (AAGs) dos 308 concelhos do País, verificou-se que
* em 24 casos, de 21 AAGs, fazendo tábua rasa da lei e da informação que lhes estava disponibilizada, atribuiu-se ao órgão de que se tratava número de mandatos diverso do que está legalmente fixado, pelo que foram eleitos mais ou menos candidatos do que a lei permite; confira aqui
* Em 91 casos, ocorridos em 69 AGGs, por deficiente aplicação do método de Hondt, verificou-se erro grosseiro na sequência dos mandatos atribuídos;
* Em 76 desses 91 casos, correspondentes ao trabalho de 56 AAGs, embora os erros não tenham influenciado o resultado final, ou seja, nenhuma força política tenha sido lesada em qualquer mandato, o certo é que o trabalho feito deixa muito a desejar, evidenciando mesmo muita falta de competência e zelo; confira aqui
* No entanto, em 15 dos mesmos 91 casos, correspondentes à acção de 13 AAGs, o ocorrido reveste-se já de muita gravidade, porque terá havido influência nos resultados finais, ou seja, terá acontecido cidadãos serem eleitos sem que a força política cujas listas integravam tivesse obtido votos que a tal fizessem jus, tendo, em contrapartida, visto os seus anseios frustrados outros cidadãos, cuja força política em que se acolhiam terá obtido os votos necessários para o efeito. confira aqui
Tudo isto pode ser constatado, seguindo os links acima indicados.
Lê-se e não se acredita! Como é possível?
Diga-se o que se disser, invoque-se o que se invocar, nada parece justificar tais erros. Menos ainda se tivermos em consideração que resultam da não observância de preceitos legais que os intervenientes nas AAGs não podem ignorar e de que menos ainda podem fazer tábua rasa.
É que é preciso não esquecer a qualidade em que metade deles ali está, ou seja, a de juiz de direito, a de jurista por aquele escolhido e a de professores, por esse motivo expressamente nomeados. Todos, portanto, gente supostamente especializada, a quem a lei cometeu tarefas perfeitamente adequadas à sua especialização.
O que se constata é, pois, um escândalo! Não poupemos nas palavras nem façamos uso de figuras de estilo. Chamemos, antes, os bois pelos nomes. O que aconteceu é um escândalo! Digno de figurar nos anais de vergonha de país terceiro-mundista!
E cabe aqui perguntar:
1 – Será que é admissível que se acredite que tudo fica a dever-se a simples ignorância?
2 – Ou a questão resume-se a um caso de menor atenção a trabalho de tamanha responsabilidade?
3 – Mas se assim é – qualquer dos casos anteriores – em que tipo de profissionais é que se pode confiar em Portugal?
4 – Será que não existe a consciência de que erros destes - resultantes de postura descuidada ou menos adequada - ferem, profundamente ferem de morte, a democraticidade de acto tão relevante para a vida de uma sociedade humana quanto uma eleição política, qualquer eleição política?
5 – Teremos que ser levados a crer que a irresponsabilidade em Portugal atingiu tais níveis que nem agentes que nos habituámos a considerar imunes a tal pecado, escapam às suas malhas?
6 – Tão exigentes e reclamantes-vociferantes que somos, quanto aos direitos que nos assistem, logo nos travestindo de ingénuos distraídos quando se trata de observarmos os deveres a que estamos obrigados?
7 – Mas, afinal, em que país vivemos e que sociedade queremos e estamos a construir?
8 – E que queremos legar às gerações que hão-de suceder-nos, essas gerações de que fazem parte já os tão propagandeados e ostracisados alunos portugueses mauzinhos a Matemática?
9 – E como podiam eles, pobres jovens, não ser assim mauzinhos, quando quem os ensina…
10 – Haverá remédio para nós? Ainda?!
11 – Ou apenas nos resta, também nesta vertente, ansiar pela IV República, que tanto tarda a chegar?...